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Fim

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Dou de cara com aquelas três letrinhas mágicas. A confirmação de que, depois de todo delírio, todo desvio, finalmente chega o momento tão desejado de dizer para mim e para o mundo que essa história toda acabou. O assunto se esgota. Quero viver outras coisas, escrever sobre outros assuntos. Mas a vida tem seu próprio tempo. 

 

         Quando veio a COVID, vivi sob a sombra de um fantasma. Era muito provável que, em algum momento, eu e minha mãe iríamos pegar o vírus. Ela estava com seus 96 anos, muito bem vividos. Eu, do meu lado, tentando fazer o melhor que podia. Ambos com câncer. Para mim, foram apenas duas semanas com os sintomas de uma gripe forte. Ela, no entanto, não aguentou. Nos últimos anos, já consciente da doença, me dizia que só queria ir embora depois de ver minha ferida totalmente cicatrizada.

       Infelizmente, isso não foi possível! Um ano se passou, e mesmo assim a ferida continua aberta. Houve aqui e ali, alguns progressos, é claro! Não há como negar! Mas olho para a frente e vejo que ainda tenho um bom tempo de espera.

         Depois de tudo o que passei, esse seria o final perfeito para o livro. Tudo se encaixaria como um golpe de mágica! O momento derradeiro em que finalmente, a ferida fecharia completamente. O fim de um ciclo natural. Assim como as estações do ano, os dias e as noites. Devia ser como nos filmes. Pelo menos é o que dizem. A vida imita a arte! Mas não foi assim que as coisas aconteceram. Simplesmente não rolou!

       Na verdade, todo mundo que conta uma história mente um pouco. Às vezes aumenta uma coisinha ou outra, aqui ou ali, ou omite um detalhe. Não sou eu que vou querer reinventar a roda! Vamos fazer de conta que esse momento tão sonhado já se realizou, e tudo seja apenas uma boa história para que eu possa, enfim, dar um fechamento ao livro.

            Enquanto a realidade insiste em adiar meus sonhos, diariamente sigo fazendo meus curativos. E escrevo. Escrevo todos os dias. Já não sigo os mesmos caminhos. São novas ideias, outros assuntos, mas mesmo assim, continuo escrevendo. Não paro. Talvez nunca mais vá parar. É a única maneira que tenho para dizer a mim mesmo que, no final das contas, esperar vale a pena!

Itamar Assunção e Bob Dylan

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ELOCUBRAÇÕES SOBRE O CÂNCER, ITAMAR ASSUMPÇÃO E BOB DYLAN

 

 

Andava calmamente pela praia do flamengo. Não tinha absolutamente pressa de nada. Era meio fim de tarde. Todo mundo chegando do trabalho, entediados dentro de seus carros num engarrafamento que começava a se formar.  Todo dia é assim, passa das cinco e tudo fica parado. Tinha saído do médico e, na verdade, não tinha nenhum motivo para querer que o tempo passasse mais rápido. Pressa para quê? Para ir para casa contar para minha mãe e meus amigos que estava com câncer e teria de ser operado?

Para mim, quanto mais demorasse, melhor!

Sinceramente, queria que o tempo congelasse ali e eu pudesse ficar vendo as pessoas retornarem para casa.

A minha cabeça estava tomada por um turbilhão de pensamentos e sensações e de repente me veio a lembrança do último show que vi do Itamar assunção.

 

Era lá pelos anos 2003, 2004, por aí. Ele tinha acabado de sair de uma cirurgia. Estava bem debilitado.

O show começava com o Itamar encontrando São Pedro no portão do céu.

Este mastigava um palito e na mão tinha um caderninho de anotações.

Nome?

Itamar Assunção!

Ocupação?

Cantor e compositor!

Sem acreditar muito, São Pedro olha para Itamar de cima a baixo com um certo desdém.

Então canta uma coisa aí...

Itamar canta à capela.

Sentimental eu sou...

Essa eu conheço! Não sabia que era sua composição

Não é minha. É “Sentimental”, sucesso de Altemar Dutra!

Ué, tu não é compositor? Então canta uma coisa sua. Ora!

“ Meu nome é Benedito João dos Santos Silva Beleléu
Vulgo Nego Dito, Nego Dito, Cascavel”

 

São Pedro não fala nada. Apenas olha para Itamar, não muito convencido.

Depois de um tempo retorna e fala

Olha, deve ter havido algum problema aqui. Você faz o seguinte! Volta lá pra baixo e compõe mais umas musiquinhas e daqui a algum tempo você volta e gente vê o que dá pra fazer.

Itamar se dirige pra plateia e diz

Compus essas músicas novas e vou cantar para vocês então.

 

E aí começava o show, só voz e violão. Foi um dos últimos shows dele. Um tempo depois ele morreu. Foi câncer no intestino. O mesmo que o meu.

 

Engraçado lembrar do Itamar agora. Lembrei de “Dor Elegante”, música dele, letra do Paulo Leminsky. A Zélia Duncan gravou.

 

Leminski disse
'Um homem com uma dor
É muito mais elegante
Caminha assim de lado
Como se chegando atrasado
Andasse mais adiante".

 

Fiquei vendo aqueles velhos andando lentamente pela calçada. É curioso, me sentia mais perto deles do que aquelas pessoas confortavelmente instaladas no ar-condicionado de seus carros num trânsito que à essa altura estava completamente parado. Na calçada várias pessoas de idade caminhavam lentamente.

 

Dizem que o Bob Dylan quando veio a primeira vez se hospedou num hotel simples no catete. Depois perguntaram para ele o que tinha achado do Rio de Janeiro, ele disse que gostou muito do Largo do Machado. Fiquei imaginando o Dylan com seu chapéu de cowboy praticamente incógnito jogando damas no largo do Machado com aquele bando de aposentados.

Ninguém daria a mínima para ele. No máximo alguém chamaria ele de maluco beleza, e não passaria muito disso.

 

É engraçado eu pensar nessas coisas nesse momento. Entendi o Dylan, entendi o Leminsky, o Itamar e os velhos. Acho que naquele momento comecei a me despedir da minha adolescência. Já não tinha mais pressa de nada!

Balas e doces
Balas e doces

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Lá no quarto do hospital, eu não podia comer nada e não tinha muito o que fazer. Por algum motivo, não queria ver televisão. Não queria nada. Tudo me incomodava. Ficava olhando para o teto e começava a pensar em bobagem. Tinha que me afastar dos pensamentos negativos. Lembrei da brincadeira de stop. Todo mundo brincou disso! Aquela coisa de nome de país, comida, carro, série de tv com determinada letra. Adorava.

Existe uma certa polêmica em torno desse jogo: Para mim era stop, mas tinha quem chamasse de adedanha. No entanto, adedanha também era o nome dado ao jogo de palitinho, vulgo porrinha, ou lona. Esse sim, um esporte nacional, ao qual eu dediquei uma boa parte da minha pré-adolescência. Então para mim o jogo com as letras era stop, e eu adorava jogar!

Fruta com letra A- Abacaxi, fruta com letra com B- Banana, fruta com a letra C- Caju, mas tinha umas letras que a coisa empacava. 

 Q? Quando o jogo era para valer, eu apelava: Quoré! Como assim você não conhece Quoré? Vai dizer que nunca comeu doce de Quoré! Minha avó fazia direto! Vai lá na Feira de São Cristovão e pergunta se tem suco de Quoré! Jogar com esse pessoal criado em apartamento não dá, vocês não conhecem nada! Chutava qualquer coisa. Às vezes dava certo!

Letra H? Huva, é claro! Não vale, né? Tive que apelar pro Google; Heisteria- Fruto presente na mata atlântica principalmente na região de Minas Gerais, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul. Conhece? Nem eu! Aliás, o Google estragou esse jogo. Hoje é muito fácil! É só ir lá e dar uma colada e daí você sabe! O legal do lance era brincar com a cultura inútil, e aí em geral, eu me dava bem! 

A partir dessa brincadeira comecei a entrar numa viagem afetiva pelos doces da minha infância. A começar pelos chocolates: A tríade gloriosa: Diamante Negro, Kri e Choquito.  Daí vinha o segundo escalão: Galak, Prestígio, Tentação. Toblerone veio depois, era bem mais caro. Só para ocasiões especiais. A melhor delas era quando passava na sessão da tarde “A fantástica fábrica de chocolates”. A primeira versão, com o Gene Wilder e os lumpa-lumpas originais!

 

Também tinha as caixas de bombons. Sonho de Valsa ou Serenata de Amor? O melhor de todos era o crocante. Só vinha um. Isso inclusive foi motivo de algumas brigas. Mas o melhor de todos, sem dúvida nenhuma, se chamava Sem Parar. Eram umas bolinhas de chocolate recheado. Me lembro de ficar jogando-as pro alto e tentando pegar com minha boca competindo com um cachorro. De uma hora para outra pararam de produzir o Sem Parar. Um tempo depois lançaram o Bis! Os caras que bolam esses nomes não dormem no ponto! Fazem de propósito os miseráveis!

E tinhas as balas! Em geral muito coloridas e isso me agradava muito. Mini Chiclete, Delicado, Confete (Avô do M&N), Bala Banda, Azedinho Doce, Frumelo, Soft (que eu comia com medo sempre me lembrando da história do garoto que engoliu e foi parar no hospital engasgado). Tinha a Boobaloo, que tinha um líquido dentro. Se esquecesse no bolso da calça (o que sempre acontecia) virava uma meleca só.

No meio dessas havia uma bala especial. Vou suprimir o nome dela por razões óbvias. Depois vocês entenderão o porquê. Ela era tipo uma prima distante do Mentex. Tia-avó do Mentos (que nessa época nem pensava em existir). Era bem colorida, mais sofisticada, mais cara, e não muito fácil de encontrar. Em geral vendidas nos cinemas. 

Ninguém sabe realmente de onde começou tudo, mas de repente surgiu uma história de que foram encontradas balas dessa marca recheadas de cocaína. Pode ter sido um boato criado por algum concorrente para tirar a bala do mercado, ou algum carregamento de exportação desviado para esse objetivo. Mas tudo isso era apenas um detalhe. A notícia já foi o suficiente para as mães histéricas surtarem e proibirem as crianças de consumir aquelas balas na saída da escola. Não aceite nada de ninguém que você não conheça! O que se dizia na época é que os baleiros colocavam droga nas balas para viciar as crianças! Teve matéria no Fantástico e tudo! De uma hora para outra as mães histéricas transformaram qualquer Baleiro em um potencial traficante.

Isso para mim era um absurdo, porque eu conhecia um baleiro que era quase um super-herói para mim. Todo lugar que ia, ele de repente aparecia meio que do nada. Na escola, no clube, no curso de inglês... ele sempre estava lá. Para mim era tipo um mago, um ser especial que tinha superpoderes de se teletransportar para todos os lugares que eu frequentava. Depois entendi que o super-herói, na verdade, era eu, que pagava as contas dele entupindo meus bolsos de todos os tipos de bala. Ele seguia sorrateiramente todos os meus passos.

Nenhuma criança realmente sequer viu, ou experimentou uma bala recheada com cocaína. Para nós, isso não tinha a menor importância. O fato é que, conforme as balas iam sendo retiradas do mercado, viraram tipo a figurinha rara do álbum, disputada à tapa. Quem tinha uma caixa adquiria um certo status de superioridade. O que estava em questão agora era a possibilidade de adquirir um objeto cobiçado, à beira da extinção.  Eram poucos lugares que ainda tentavam vender o que restava do estoque encalhado. O meu baleiro particular, meu herói, escondia algumas caixas estrategicamente debaixo do Mentex! No máximo ela trazia, duas ou três caixas e me passava silenciosamente quando ninguém estava olhando. Dividiamos aquela cumplicidade, olhando para todos os cantos.

Jurei para ele não revelar a minha fonte. Os baleiros já estavam meio preocupados com o olhar repressivos das mães neuróticas. Tinha dias que inclusive chegava algum guarda por ali, na saída da escola para proteger as crianças e de quebra tomar um sorvete, é claro, que ninguém é de ferro.

No meio disso tudo guardava aquela caixa no meu bolso, como se fosse um segredo mortal. Comia com uma felicidade incontrolável. Tentei segurar o máximo possível, mas acabei trocando algumas balas com um garoto incrédulo. Troquei por uma figurinha do Dick Vigarista. Raríssima na época!

Tudo isso ficou mais de quarenta anos esquecido. Outros interesses, outros problemas, novas questões surgiram. Agora tudo voltava à tona. Precisava dessas lembranças. Queria esquecer o presente e tinha tempo de sobra.

Cosme e Damião

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Vivi a minha infância na zona norte na década de 70. Naquela época, Cosme e Damião era um acontecimento. Logo de manhã, de uma hora para outro, começavam a pipocar os pontos de distribuição. E corríamos de lado para outro como se estivéssemos numa verdadeira caça ao tesouro. Antes de tudo, era muito importante que definíssemos nosso quartel-general. Um lugar seguro para estocar os saquinhos. Tinha que esconder tudo. Não podia dar mole. É um saquinho por criança! Mas você já tem dois! Ai, tinha que apelar, de preferência com algum tom melodramático. Eu já tenho... mas esse aqui...esse aqui...É para o meu irmão, para minha prima, e para a minha melhor amiga!  Ah, e minha irmã mais nova, se não levar no mínimo uns dois saquinhos, ela vai me encher a paciência pelo resto da semana. Na verdade, no final das contas ninguém comia tudo aquilo. Era meio uma competição. Quem juntava mais saquinhos era o todo-poderoso.

12 de outubro era o dia da criança. Mas não tinha a mesma graça do Cosme e Damião. No dia da criança se dava brinquedo. Doce era no Cosme e Damião. E aí crianças, o que vocês preferem? Bala ou brinquedo?? Baaaalaaaaaaaaaa! É óbvio! Que pergunta!

Felicidade ou infelicidade, o fato é que nasci no dia 25 de setembro, simetricamente posicionado dois dias depois da chegada da primavera e dois dias antes do dia de São Cosme e Damião. E numa dessas ocasiões, o meu aniversário caiu num sábado e minha mãe teve a ideia de comemorar meu aniversário na escola. Segunda-feira, 27 de setembro, dia de São Cosme e Damião. Uma festinha simples, nada demais. Um bolo, chapeuzinhos e balões de encher. E o mais legal de tudo. A turma toda. Todos os amiguinhos cantando parabéns pra vc. (No caso, era parabéns para mim!). Fiquei realmente emocionado. Me senti amado, querido por todos meus amiguinhos. Na hora da saída era fácil dizer quem é quem! As crianças com chapeuzinho na cabeça eram especiais. Meus amigos!

A mãe pergunta para a garota, carregando um pedaço de bolo embrulhado no guardanapo colorido... Que bacana! Teve festa! Foi Cosme e Damião? A garota não pensa duas vezes...com um sorriso estampado no rosto e uma alegria incontrolável, respondeu. Foi! Cosmeee e Damiãããoo!

Fiquei revoltado. Num impulso raivoso, segurei o braço dela, e gritei...

 Cosme e Damião nada, tá! Foi meu aniversário, tá? Meu aniversário!! Meeeeu!! Berrei batendo no peito com força!

A vontade era de arrancar o bolo da mão dela. Me devolve, então! Se você acha que foi Cosme e Damião então vai correr atrás dos saquinhos! Ingrata, falsa!

No início fiquei tive muita raiva dela, depois de São Cosme e Damião, coitados, e finalmente a culpa sobrou para a minha mãe. Poxa! Não podia ter feito a festa um dia antes, na sexta-feira,23? Meu aniversário seria o marco inicial da grande temporada das guloseimas!

E agora? E se todas aquelas crianças estivessem, na verdade homenageando Cosme e Damião o tempo todo, sem que eu me desse conta? Será que fui enganado? Me senti passado para trás. E eu achando que eram meus amigos. Um bando de gulosos, isso sim!

Passou algum tempo e percebi que não era o fim do mundo. Existem problemas mais graves por aí. Imagine se eu tivesse nascido em 12 de outubro, no Dia das Crianças, ou 25 de dezembro, no Natal. Nossa! Coitadas! Essas crianças nunca sabem realmente o que está se comemorando. Acho que, na verdade, tive muita sorte de ter nascido em dia 25 de setembro! É uma data legal. E logo depois, mais dois dias tem São Cosme e Damião! Nada mal!

Laranja-Mecanica-filme- Método Ludovico

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Algumas pessoas me diziam que querer é poder. Achava tudo isso meio complicado! Eu simplesmente não conseguia escutar isso numa boa. Decididamente não estava naquela situação porque queria. Adotei uma forma muito realista de encarar o que estava acontecendo comigo. Sempre evitei aquele otimismo exagerado dos métodos de autoajuda. Não queria. Achava que não valeria a pena. A dor da frustração poderia ser muito grande e eu, decididamente, não estava a fim de encarar essa.

Mas havia a fé! Não estou falando aqui na crença em um ser superior. Mas na fé na minha própria cura. A cura é tipo um pacto com o tempo, com a vida, com a natureza. No caso, a natureza era uma ferida, e eu tinha que respeitar e aceitar as regras internas, com seus próprios fluxos de idas e vindas.

          Às vezes alguém me dizia que eu estava destinado a me curar porque assim era a vontade de Deus. Tinha uma certa dificuldade de lidar com isso. Teria sido também a vontade de Deus me colocar naquela situação?

         Nunca fui diretamente ligado à nenhuma religião em especial. Vivia numa espécie de mistureba mística. Valia um pouco de tudo! Estudei em Colégio de freira, de padre, faculdade católica, fiz tratamento espírita, iniciação budista, frequentei o candomblé e umas outras coisas que até hoje não sei muito bem o que era. Era movido pela curiosidade. Mas sempre chegava um momento em que esbarrava com a instituição igreja, e acabava me desinteressando por tudo.

           Durante o período em que estive internado, recebi vários apoios espirituais, imprescindíveis e inestimáveis, de amigos próximos e distantes. Na verdade, se formou uma corrente de oração muito forte a qual serei muito grato pelo resto da vida. Teve de tudo. Todos os tipos de credos: Católicos, Evangélicos, Budistas, Candomblé, e uma quantidade variadíssima de tratamentos espirituais. Tudo teve sua parcela de ajuda na minha cura. Eu não recusei nada! Toda força, todo apoio naquele momento foram muito bem-vindos, e sou muito grato a isso.

        Como estava num hospital católico, logo no primeiro dia da minha internação foi oferecido um acompanhamento espiritual. Eu recusei. Tinha um pouco de receio de ser alguma coisa ostensiva demais. Se eu sentisse necessidade, poderia então pedir ajuda, a hora que quisesse. Achei que seria mais prático assim.

        Num determinado dia, ainda dopado, meio acordado, meio dormindo, dei de cara com um Padre na minha frente, rezando. Eu ainda tinha uma certa dificuldade de concentração e me cansava muito rápido, mas, mesmo assim, gostava da fala dos Padres, desde que fossem breves. Naquele dia, estava com um pouco de dificuldades para a entender o que ele estava dizendo. Mas, aos poucos, aquelas palavras começaram a fazer sentido. Ele falava em deixar uma vida de pecados para trás e abrir o coração para um mundo novo. Pensei...Epa! Eu conheço isso!

       A ficha começou a cair. Estava recebendo a extrema unção!

Profecias Nostradamus

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                                                                                                     A  PROFECIA

 

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Com esse calor todo já podemos mudar o nome da cidade para Hell de Janeiro. Mas o problema é que ainda falta um tempinho pela frente, meu irmão. Estamos em pleno Novembro, e tudo isso aí é só uma amostra grátis do que vem por aí. Então, o negócio é relaxar e tentar esfriar a cabeça. Pelo menos a cabeça.

O problema é que esse pessoal é muito apressado. No primeiro semestre ainda dá pra segurar a barra, mas passou de agosto já vem aquela história: Nossa, como o tempo voa já estamos na metade do ano, daqui a pouco é Natal. Seis meses pela frente, e o fulano quer ver logo o fim do ano. Daí vem o calor e ele reclama!

Tudo bem. Está quente. Mas tem uma coisa que me incomoda mais do que o calor. É essa moda de previsão. Todo fim do ano tem isso, mas agora, especialmente, talvez por causa das guerras, do aquecimento global e do apetite algorítmico todo mundo resolveu antecipar o fim do mundo. E dá lhe vidente, apocalipse, profecias milenares, tudo é um sinal do fim dos tempos. Sobrou até pro coitado do Nostradamus.

Esse já tá com o filme completamente queimado. É só rolar uma desgraça que aparece alguém um tempo depois dizendo que o Nostradamus já tinha previsto isso, e coisa e tal.

Mas a moral do Véio Nostra já tinha ido por água abaixo no verão de 1984. Na época, ele andava em alta devido a uma forcinha dada pelo Eduardo Dusek (ex-Duardo). Tempo depois veio o Rock in Rio. Ninguém sabe realmente de onde surgiu o boato, mas de uma hora para outra todo mundo começou a falar na profecia de um desastre com centena de jovens. Os mais fanáticos até confirmavam que seria num concerto de rock na américa do sul. Há quinhentos anos, o cara já tinha profetizado a chegada do rock, e a vinda do Elvis e do Ozzy.

Bem, o Rock rolou solto naquelas duas semanas. Dusek até fez sua homenagem, mas acabou sendo vaiado pela horda de metaleiros ensandecidos. Passados quinze dias de lama, suor e muitos roquenrou, o mundo não se acabou, mas até o último minuto do último show, ainda sentia aquele frio na barriga. Deu certo. Isso aconteceu. Queen, Ac Dc, Ozzy, Rod Stewart, as bandas nacionais. Muita coisa rolou por ali. No final, sentíamos uma coisa boa. Era um pouco de novidade. Sabíamos que tudo poderia renascer das cinzas, Até o Yes que tocava o gran finale com Starship Trooper. Me beliscava para crer que aquilo era verdade. Ao fundo, alheio ao raio laser que hipnotizava a todos, uma multidão cantava animada:

Eu, eu eu, Nostradamus se fudeu!

Black Fraude

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Talvez até bem mais do que o fim do mundo, a Black Friday tem me enchido bastante a paciência. Já faz algum tempo que eu recebo uma tonelada de anúncios sobre essa efeméride, e quando vou ver ainda não chegou. É sempre daqui a algumas semanas. Agora, após uma breve conferida noo Dr google tenho a certeza. Sim, meus amigos! É hoje o dia!

 

 

Pelo que fui informado, a tal da Black Fraude é quando você pode comprar tudo pelo dobro da metade do preço. Eu me considerado uma pessoa absolutamente nula com relação ao consumismo. Posso atravessar um shopping de ponta a ponta e sair de mãos vazias. Na verdade, só frequento esses locais para filar um pouco de ar-condicionado. E comer. Ah sim, a gula é o meu ponto fraco consumista. Mas depois que tive que reduzir a glicose no sangue, só me restou o friozinho do ar-condicionado. E ainda é de graça. Por enquanto.

Teve uma vez na minha vida que fui agraciado com a visita na porta de minha casa de uma pesquisadora de mercado. Dentre milhões de indivíduos fui um dos felizardos a receber durante seis meses um carregamento gratuito de quaisquer produtos de uso diário de minha escolha. Tudo gratuito. Bastava eu responder meia dúzia de perguntas. Perfeito! Era o paraíso. Finalmente a sorte sorria para mim. Se bem que não tinha nada para comer, mas tudo bem, nem tudo é perfeito. Me entregaram um calhamaço de produtos para ir escolhendo. Não queria nem saber, escolhia o que usava e não usava, afinal era tudo de graça! Creme para a pele, shampoo, condicionador, creme para barba, desodorantes de todos os tipos, e por ai vai...

Passado alguns dias e chegou na minha casa um pacote. Me parecia a cesta básica do homem metro sexual. Todas as embalagens eram brancas sem nenhum rotulo ou nada que me possibilitassem reconhecer as marcas.

No início foi muito legal. Passei a consumir produtos novos, e o melhor de tudo, sem gastar um centavo. E sabia que seriam seis meses dessa maravilha. Seis meses!

Mas, com o tempo as coisas começaram a ficar meio complicadas. Comecei a receber ligações telefônicas intermináveis querendo saber detalhes muito específicos sobre produtos que para mim não diziam absolutamente nada.

Tirando os cigarros que eu ainda fumava na época e as pastas de dentes que pulavam radicalmente de sabor menta pra chiclete tutti frutti, o resto, para mim era absolutamente igual. Não sentia diferença nenhuma. E para piorar comecei a achar aquelas embalagens brancas, sem nada escrito meio deprimente.

No início chutava qualquer coisa. Depois de algum tempo as minhas respostas começaram a entrar em contradição. Com relação a quantidade de espuma, qual a nota de zero a dez que o senhor dá para o sabonete dessa semana? Ah...hum...Dez!

Dez? O senhor deu zero no mês passado? O senhor então sentiu muita diferença entre um e outro, certo?

Bem...sim, não. pode ser!

Aquilo foi me incomodando. A todo momento era colocado contra a parede. Uma hora resolvi abrir o jogo. Já estava de saco cheio.

Olha, na verdade eu não vejo diferença nenhuma. Para mim tudo é a mesma porcaria. A única coisa que sinto falta são os rótulos.  Escolho pela cor. Vou levar aquele azul, aquele vermelho e aquele amarelo. Pronto! Agora aqui é tudo, não faz diferença nenhuma, para mim é tudo igual.

Percebi naquele momento que tinha falado a única coisa que não podia. Em pouco tempo a conversa mudou de rumo e me avisaram que a coordenação iria entrar em contato comigo em breve. Percebi que definitivamente tinha mandado uma bola fora quando, duas semanas depois cancelaram o envio dos produtos e me agradeceram dizendo que os dados recolhidos já tinham sido suficientes e coisa e tal. Para fechar a tampa me pediram para definir em duas palavras meu perfil consumidor. A essa altura já deviam me considerar um troglodita, alguém que ainda não tinha entrado na revolução industrial e na sociedade de massa. Um alienado do consumo. Depois de um tempo raciocinando mandei lá. Em termos de consumo me considero bem...um conservador obsessivo! Após um leve gargalhada, a entrevistadora falou ao telefone. Acho que não temos essa categoria aqui. Vou colocar em “outros”, ok?

E desligou o telefone. Acho que não estavam muito interessado nos outros.

O circo chegou

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                                                                                                    O CIRCO CHEGOU

 

 

Muito antes do Cirque Du Solei, circo era a grande diversão. E circo para valer tinha que ter animais. Não me importava os argumentos dos politicamente corretos. Minha mente infantil delirava com aquele ambiente mágico: Os cavalos dançantes, elefantes que levantavam a pata e apoiavam num banquinho minúsculo, e os reis do pedaço: os temidos leões! A essa altura do campeonato eu já tinha decidido. Eu queria ser dono de circo! Simplesmente achava fantástica a ideia de poder invadir uma cidade desconhecida nos cafundós do interior do Brasil e levar fantasia, diversão e alegria para todos. Não precisaria de muita coisa. Uma Kombi velha e uma lona colorida  já daria para o gasto. Na verdade, eu já tinha o meu próprio circo. Um caixote de feira, uns pedaços de madeira e barbante e pronto! Tinha o picadeiro montado! As grandes estrelas eram as centopéias! Fantásticas na corda bamba!

 Morava numa casa com um quintal grande na zona norte carioca. Um belo dia recebemos a visita de um primo, que deu de cara com o meu irmão mais velho tentando aprender a andar de bicicleta. Éramos bem pequenos e naquela época ele ainda usava rodinhas de apoio. Não me lembro muito como começou a conversa, mas chegou um momento em que surgiu uma aposta. Se até a semana que vem ele deixasse de usar as rodinhas, iríamos todos ao circo no domingo!

 Devo ter sido o treinador mais chato da história durante aquela semana toda. Na verdade, não estava nem aí pro meu irmão, para a bicicleta ou para as rodinhas. O que eu queria era ir ao circo de qualquer maneira. Acho que enchi tanto a paciência dele que acabou conseguindo andar sem as famigeradas rodinhas. Foi uma grande vitória e quando o domingo chegou estávamos devidamente acomodados nas arquibancadas de madeira, provavelmente munidos de pipoca e coca cola, esperando o grande momento.  Era um circo muito famoso na época, o Orlando Orfei. Gigantesco, superprodução. Meu irmão ficou alucinado com os motociclistas do globo da morte. Eu, completamente siderado com aquela atmosfera toda. A todo momento pensava como seria o meu próprio circo. A cada atração que se seguia eu julgava como um verdadeiro empresário. Gostei! Meu circo também vai ter isso, mas vai ser melhor!

Até que, de repente, veio o inesperado! Adentra Orlando Orfei, o dono do circo e domador de leões. Como assim, domador de leões? Na minha mente infantil, achei que todo dono de circo teria de ser obrigatoriamente um domador de leões. Ferrou tudo! Foi uma profunda decepção. Cheguei a conclusão de que me faltaria coragem para domar aquelas feras que rugiam assustadoramente enquanto o domador estalava o chicote.

 Pensei comigo: Vou ter de me contentar com as centopéias mesmo. Tive que aceitar que tinha medo. O globo da morte não era problema, o trapézio, tudo bem, poderia ser o magico, o palhaço, o malabarista, poderia qualquer coisa, mas não me via com coragem suficiente para domar leões. Isso decididamente não estava nos meus planos!

Foi uma grande ducha de água fria. Fiquei um bom tempo calado sem pensar no assunto. Tive de me esquecer de toda aquela história de circo. Libertei as centopéias. Não poderia continuar enganando-as. Não tinha coragem para domar os leões e não me sentia mais capacitado para ser dono do circo. Era um farsante. Isso sim! Acabei me conformando e resolvi me dedicar a um sonho menos perigoso e mais modesto.

Algum tempo depois, em uma viagem por uma cidade do interior, meu pai resolveu nos mostrar o verdadeiro espírito circense. Circo bom é do interior. Repetiu isso várias vezes enquanto nos encaminhávamos para o Gran-Circo não sei das quantas.  Um circo pequeno e simples sem esses efeitos especiais, superprodução e sofisticação. Não tinha leões, nem elefantes, nem globo da morte. Tinha uma lona, um palhaço, um mágico com sua assistente que também era malabarista.

Depois vim a descobrir que ela também era a bilheteira, e o dono do circo também era o palhaço e o mágico. Mas isso era apenas um detalhe. a faixa na entrada anunciava com letras garrafais: Magico, palhaço, malabarista e grande elenco!

Pensei comigo. Deve ser um elenco bem grande porque, afinal, não tinha animal nenhum. Circo do interior não tem bicho! Achei estranho, mas tinha mágico, palhaço, malabarista, equilibrista. Sim me pareceu legal. Não tinha globo da morte. Achei que meu irmão não ia curtir muito.

Foram horas e horas de espera. As arquibancadas iam enchendo e nada. Às vezes uma voz de mulher falava nas caixas de som.

-Respeitável público.... Todo mundo aplaudiu, mas após uma pausa completou: Por motivo de força maior, hoje infelizmente não teremos o número dos trapezistas! Poxa que chato, eu gostava dos trapezistas! Sempre morria de medo de eles se soltarem e caírem lá do alto. Se eu fosse escolher alguma coisa para fazer no circo seria trapezista. Ou mágico.

Passou mais meia hora e a voz fez um novo anúncio nas caixas de som.

-Respeitável público.... Por motivo de força maior, hoje infelizmente não teremos o número dos acrobatas. E assim foi até que não restava mais nada a não ser a do dono do circo, que também era o mágico e o palhaço. Sobrou também a assistente, que também era a bailarina, a bilheteira e, adivinhem! Também era a voz no alto falante.

Na verdade, o grande número da noite foi justamente quando meu pai perdeu as estribeiras e se levantou zangado resmungando e rasgando os ingressos.

Vamos embora, esse circo é uma porcaria!

E assim fomos. Enquanto ele me puxava pelo braço eu pensava comigo.

É, não adianta mesmo. Circo pra ser bom mesmo tem que ter leão!

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